Formas Contemporâneas de Escravidão Humana

Resumo: O presente artigo procura uma breve reflexão sobre a estratégia de globalização, a qual tem gerado perda de direitos, agravando a exclusão social e as marcas de pobreza por todo o globo. Os flagrantes de trabalhadores submetidos a situações análogas à de escravo, tráfico internacional de pessoas, exploração sexual de mulheres e utilização de mão de obra infantil, são algumas formas contemporâneas de escravidão humana, as quais permanecem recorrentes em pleno século XXI, em que pese a existência de políticas de combate à escravidão. Nesse sentir, o papel do Estado deve ser redefinido, tendo em vista o impacto da globalização econômica por todo o globo. Faz-se premente a incorporação da agenda de direitos humanos por dois atores não estatais fundamentais: as agências financeiras internacionais e o setor privado.

Palavras-chave: Globalização. Escravidão contemporânea. Agências financeiras internacionais. Setor privado.

Sumário: 1 Introdução. 2 Da perda de direitos em face da estratégia de globalização econômica. 3 Formas contemporâneas de escravidão humana. 4 Da incorporação de direitos humanos por atores não estatais: agências financeiras internacionais e setor privado. 5 Considerações finais. 6 Referências.

1 INTRODUÇÃO

As desigualdades contemporâneas associadas a um sistema econômico mundial que busca incessantemente aumentar lucros e reduzir custos tende a gerar inúmeros efeitos colaterais que se colocam à margem da lei. Entre os exemplos dessa problemática podemos destacar a existência de atividades remuneradas que são realizadas de forma análoga à condições de trabalho escravo, ou ao menos, com diversas violações aos direitos trabalhistas, o trabalho forçado, o tráfico internacional de pessoas, a exploração sexual de mulheres, a utilização de mão de obra infantil.
Das formas mais sutis às mais radicais dessas violações, cria-se um sistema de transgressão de Direitos que, muitas vezes, custeia economicamente diversos setores do mercado.
Essas questões são trazidas ao universo jurídico que precisa apresentar respostas, enfrentando estruturas poderosas e violações invisíveis que precisam ser desveladas, fim de que se obtenha uma globalização mais ética e solidária.
Para auxiliar a caminhada que se tem nesse sentido, busca-se no ponto 2 DA PERDA DE DIREITOS EM FACE DA ESTRATÉGIA DE GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA, introduzir a questão de forma ampla, buscando uma breve reflexão sobre as estratégias econômicas do fenômeno da globalização, as quais vêm ocasionando perdas de direitos por todo o mundo. Num momento seguinte através do ponto 3 FORMAS CONTEMPORÂNEAS DE ESCRAVIDÃO HUMANA, será oportuno o enfrentamento da questão especificamente no que diz respeito à escravidão contemporânea, por ser um problema que vem se mantendo e desafiando os olhares jurídicos na atualidade. Nesse sentido, na continuidade dessa reflexão, busca-se no ponto 4 Da incorporação de direitos humanos por atores não estatais: agências financeiras internacionais e setor privado, verificar a possibilidade de atuação das agências financeiras internacionais e do setor privado como incorporadores de direitos humanos, em face da relevância do papel que exercem.
Trata-se de uma abordagem para estimular reflexões sobre as formas contemporâneas de escravidão humana, diretamente relacionadas às assimétricas relações de poder existentes no âmbito das sociedades capitalistas, com ou sem respaldo legal. Busca-se contribuir efetivamente para a compreensão de que a escravidão contemporânea é uma realidade, a qual deve ser combatida e prevenida por todos os entes da sociedade.

2 DA PERDA DE DIREITOS EM FACE DA ESTRATÉGIA DE GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA

As desigualdades contemporâneas estão associadas ao sistema econômico mundial, baseado na globalização das trocas, sobretudo econômicas. O mercado tem como objetivo primordial a busca incessantemente por aumentar lucros e reduzir custos, com isso promovendo a “abolição dos direitos humanos mais elementares”.
O critério da maximização dos lucros, instituído pela maioria das corporações, acaba por ocasionar inúmeros efeitos colaterais que se colocam à margem da lei. Entre os exemplos dessa problemática podemos destacar as atividades remuneradas que são realizadas de forma análoga à condições de trabalho escravo, ou ao menos, com diversas violações aos direitos trabalhistas, o trabalho forçado, o tráfico internacional de pessoas, a exploração sexual de mulheres, a utilização de mão de obra infantil, práticas recorrentes por todo o globo.
Grandes empresas vangloriam-se com seus elevados padrões de direito do trabalho, enquanto que as condições das empresas periféricas são significativamente piores, “o mercado é transformado em um único valor superior diante do qual todos os valores considerados inferiores são sacrificados”.
Na realidade latino-americana, o fenômeno da globalização tem agravado o dualismo econômica, com o aumento das desigualdades sociais e do desemprego, aprofundando-se as marcas da pobreza absoluta e da exclusão social:
Na tradição dos Estados Sociais, o enfoque sempre foram os Direitos Humanos. A partir do século XIX e grande parte do século XX, a luta passou a ser pela sociedade socialista, pré-definida a partir da propriedade socialista. De acordo com Hinkelammert,
a flexibilização do trabalho, a supressão de direitos que estavam até certo ponto integrados nesses estados de bem-estar, os direitos à saúde, à educação, à habitação, todos assegurados por medidas do Estado social, foram revogados e entregues a empresas privadas. Assim, todos os direitos são anulados enquanto direitos universais.
No entanto, na atualidade é diferente. A flexibilização do trabalho, a supressão de direitos que eram de algum modo preservados pelos Estados Sociais foram entregues as empresas privadas. Hinkelammert observa que “as distorções do mercado”, ocasionam a “extinção sistemática dos direitos humanos conforme proclamados na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU”.
De acordo com Dezalay e Trubek, uma série de mudanças vêm ocorrendo no cenário mundial, entre elas,

mudança nos padrões de produção: os novos sistemas de especialização flexível e a “fábrica global” tornaram-se mais fácil a produção e outras atividades econômicas em muitas partes do mundo, facilitando o deslocamento de atividade econômica de um país para o outro e contribuindo assim para o desenvolvimento de uma nova divisão internacional de trabalho. […] aumento da importância das empresas multinacionais, devido ao fato de as grandes empresas multinacionais estarem agora capacitadas a expandir tanto a produção quanto outras operações por todo o mundo, além de mudar fábricas de um país para o outro, seu potencial de negociação tem se fortalecido e sua importância na economia mundial tem aumentado.

Diante desse cenário, o controle para prevenir e proteger direitos, conforme sustenta Delmas-Marty, constitui a “primeira etapa que reforça a eficácia do sistema no que concerne ao respeito dos direitos civis e políticos”.
Nesse sentido, é imprescindível que os Estados, as organizações de defesa, os movimentos sociais e as grandes corporações, venham a discutir sobre a perda de direitos tendo em vista a estratégia de globalização econômica. Conforme afirma Bobbio, na introdução de A era dos direitos,
Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem, reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia não existem as condições mínimas para a solução pacifica dos conflitos.
A realização e o reconhecimento dos direitos humanos, é condição de possibilidade para uma sociedade sustentável, caso contrário, nos encaminharemos para uma situação que beira o colapso da sociedade. De acordo com Delmas-Marty,
A universalidade dos direitos do homem remete preferencialmente a um universo mental que a um universo real. Afirmada pela Declaração “Universal” de 1948, ela essencialmente ainda está por ser construída. Trata-se, pois como a globalização econômica, de um processo em curso que possui as interrogações suscitadas pela sua aparente fragilidade. Porém, com a diferença de que este processo, que se pode dizer “de universalização”, não tende a difusão de um modelo único, a partir de um ponto único, mas, sobretudo, a emergência, em diversos pontos, de uma mesma vontade de reconhecer os direitos comuns a todos os seres humanos. Neste sentido, a universalidade implica mais num compartilhar de sentidos e mesmo num enriquecimento de sentidos pela troca entre as culturas: “com efeito, todas as sociedade vivem alguma coisa das exigências dos direitos do homem, mas cada um a sua maneira. Trata-se, então, de reaproximar estas “diferentes maneiras”, para que elas se interpenetrem e se enriqueçam.
Diante do atual contexto, a fim de que se possa garantir a sobrevivência humana, a questão não seria abolir o Estado e o mercado, mas recorrer ao “discernimento do Estado e do mercado e recuperar a democracia pública como instrumento para controlar a burocracia privada e submetê-la através da intervenção no mercado para o bem comum”. Tal movimento tende a gerar a garantia de direitos humanos e “Existindo direitos humanos, eles são de todos os seres humanos, não apenas de um grupo”.

3 FORMAS CONTEMPORÂNEAS DE ESCRAVIDÃO HUMANA

O desenvolvimento exorbitante das economias privadas e a estratégia da globalização, em face das atuais condições econômicas, tais como, concorrência acirrada, desemprego tecnológico e crescimento das migrações por todo o globo, acabam por ocasionar inúmeras formas contemporâneas de escravidão humana.
A escravidão, segundo Pinsky, se caracteriza por sujeitar um homem ao outro de forma completa, ou seja, “o escravo não é apenas propriedade do senhor, mas também sua vontade está sujeita a autoridade do dono e seu trabalho poder obtido até pela força”.
A propriedade do homem pelo homem, um dos piores crimes praticados pela humanidade, não difere muito das formas contemporâneas de escravidão, a qual “atinge tanto países em desenvolvimento, como países desenvolvidos e os excluídos de crescimento”.
De acordo com a Fundação Walk Free, Organização Não Governamental que combate o trabalho escravo moderno, a escravidão contemporânea ocorre quando, “one person possesses or controls another person in such a way as to significantly deprive that person of their individual liberty, with the intention of exploiting that person through their use, profit, transfer or disposal”.
Para Schwarz, a escravidão contemporânea configura-se,
em situações que o trabalhador é reduzido, de fato, a condição análoga à de escravo, sendo-lhe suprimido o seu status libertatis. Situações em que, por meio de dívidas contraídas junto ao empregador ou seus prepostos, ou por meio de outras fraudes, inclusive a retenção de documentos contratuais ou pessoais ou de salários, ou violência ou grave ameaça, o trabalhador permanece retido no local da prestação de serviços, para onde foi levado, não podendo dele retirar-se com segurança. Consubstancia-se, portanto, na supressão, de fato, da liberdade da pessoa, sujeitando-a ao poder discricionário de outrem, que realmente passa a exercer, sobre ela, poderes similares àqueles atribuídos ao direito de propriedade.
Conforme sustenta Nina,
As formas atuais de escravidão estão relacionadas com o mundo globalizado e a facilidade de migração de pessoas, e estão associadas à busca de vantagens econômicas, ilícitas na sua maioria e são encontradas em todas as regiões do mundo. Nos países industrializados, casos de trabalhadores migrantes em servidão por dívida têm-se registrado na agricultura e em outros setores de mão de obra intensiva, como a construção civil, confecção, embalagem e processamento de alimentos.
A escravidão histórica em muito se assemelha com a que vivenciamos atualmente. Segundo sustenta Nina, “é ponto comum, a venda de crianças por seus parentes e tráfico de mulheres, antes vendidas na sua maioria como mulheres para os colonos ou servas para o trabalho doméstico”.
De acordo com a publicação da Organização Internacional de Trabalho (OIT), Possibilidades Jurídicas de Combate à Escravidão Contemporânea, a “escravidão na atualidade por muitos é denominada de escravidão branca; por outros, de nova escravidão; outros, ainda usam aspas na palavra escravidão”. Nesse sentido, a própria ‘caracterização’ do fenômeno ‘escravidão contemporânea’ é complexa.
Para Nina, em não sendo escravidão contemporânea “beneficiária de algum tipo de reconhecimento”, acaba por ser difícil a quantificação desta prática nos países em que ocorre. No entanto, diversos órgãos estatais e não estatais combatentes, tentam quantificar esta violenta prática.
De acordo com o índice de escravidão global de 2014, divulgado pela Fundação Walk Free, em que pese seja ilegal a escravidão em quase todas as nações do globo, tais práticas ainda persistem. Em 2014, 35,8 milhões de pessoas eram escravizadas no mundo. Segundo a estimativa global de trabalho forçado de 2012 da Organização Internacional do Trabalho, 68% estão sujeitos à trabalho forçado; destes, mais da metade das vítimas de escravidão são mulheres e meninas. Ainda, cerca de 1 em cada 3 vítimas de escravidão é criança, conforme Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas de 2014 do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). O trabalho escravo contemporâneo em 2014, segundo o Departamento do Trabalho dos Estados Unidos, contribuiu para a produção de pelo menos 136 produtos de 74 países.
Considerando as especificidades do Brasil, que é o segundo país do mundo com o maior contingente populacional afrodescendente, tendo sido, contudo, o último país do mundo ocidental a abolir a escravidão, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em princípio, seriam cinco as possíveis hipóteses de escravidão contemporânea:

1.A primeira categoria de condições degradantes se relaciona com próprio o trabalho escravo stricto sensu. Pressupõe, portanto, a falta explícita de liberdade. Mesmo nesse caso, porém, a idéia de constrição deve ser relativizada. Não é preciso que haja um fiscal armado ou outra ameaça de violência. Como veremos melhor adiante, a simples existência de uma dívida crescente e impagável pode ser suficiente para tolher a liberdade. A submissão do trabalhador à lógica do fiscal não o torna menos fiscalizado.
2.A segunda categoria se liga com o trabalho. Nesse contexto, entram não só a própria jornada exaustiva de que nos fala o CP – seja ela extensa ou intensa – como o poder diretivo exacerbado, o assédio moral e situações análogas. Note-se que, embora também o operário de fábrica possa sofrer essas mesmas violações, as circunstâncias que cercam o trabalho escravo – como a falta de opções, o clima opressivo e o grau de ignorância dos trabalhadores – as tornam mais graves ainda.
3.A terceira categoria se relaciona com o salário. Se ele não for pelo menos o mínimo, ou se sofrer descontos não previstos na lei, a inserção do nome do empregador na lista se justifica.
4.A quarta categoria se liga à saúde do trabalhador que vive no acampamento da empresa – seja ele dentro ou fora da fazenda. Como exemplos de condições degradantes teríamos a água insalubre, a barraca de plástico, a falta de colchões ou lençóis, a comida estragada ou insuficiente.
5.Mas mesmo quando o trabalhador é deslocado para uma periferia qualquer, e de lá transportado todos os dias para o local de trabalho, parece-nos que a solução não deverá ser diferente. Basta que a empresa repita os caminhos da escravidão, desenraizando o trabalhador e não lhe dando outra opção senão a de viver daquela maneira. Esta seria a quinta categoria de condições degradantes.

O Ministério do Trabalho e Previdência Social, com base na Lei de Acesso à Informação, divulgou em 05 de fevereiro de 2016, uma “Lista de Transparência”, contendo dados da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo no Brasil.
Conforme relação nominal, entre dezembro de 2013 a dezembro de 2015, foram autuadas 340 empresas em decorrência de caracterização de trabalho análogo ao de escravo, com decisão administrativa dos autos de infração transitada em julgado, confirmando a autuação.
Entre os empregadores autuados, em torno de 30% tratam-se de fazendas, estabelecimentos estes responsáveis por perpetuarem no Brasil as práticas de trabalho escravo,
especialmente nas propriedades rurais, há empresários que, para a realização de derrubadas de matas para a formação de pastos, a produção de carvão para a indústria siderúrgica, o preparo de solo para o plantio e outras atividades agropecuárias, recorrem à exploração de mão-de-obra escrava, diretamente ou por pessoa interposta.
Segundo dados do Ministério do Trabalho, no ano de 2015, foram resgatados 1.010 trabalhadores que estavam em condições análogas à escravidão. Das 140 operações feitas pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel e por auditores fiscais do trabalho, em 90 dos 257 estabelecimentos fiscalizados foram encontrados trabalhadores nessa situação.
O Brasil, em fevereiro de 2016, será o primeiro Estado a ser julgado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização de Estados Americanos (OEA), por práticas de trabalho escravo contemporâneo, pelo caso conhecido como ‘Fazenda Brasil Verde’.
No caso dos trabalhadores da ‘Fazenda Brasil Verde’, localizada no sul do Pará, desde 1998 ocorreram inúmeras fiscalizações que constataram a existência do trabalho escravo na região, mas sem nenhuma consequência de investigação penal, tampouco de reparação às vítimas e punição dos responsáveis.
Centenas de trabalhadores foram aliciados pela Fazenda Brasil Verde, com base em promessas enganosas de salários fixos, durante pelo menos 16 anos. Submetidos à condições de trabalho insalubres e degradantes, jornadas exaustivas, eram vigiados por capatazes agressivos e armados. Os trabalhadores, a grande maioria analfabeta, viajavam mais de 700 quilômetros a partir do Piauí, Maranhão, Tocantins e Pará, contraindo dívidas desde o seu primeiro deslocamento.
Em 1988, houve a primeira denúncia da prática de trabalho escravo na Fazenda, seguida de outras 11, em anos subsequentes, as quais suscitaram um total de seis fiscalizações (de 1989 a 2002), resgatando 340 trabalhadores.
Desde a primeira ocorrência houveram inúmeras negociações entre as partes envolvidas. Entretanto, em dezembro de 2013, o Estado suspendeu a negociação, prometendo resolver o problema unilateralmente, porém, pediu várias prorrogações de prazo e acabou não cumprindo as promessas assumidas. Como decorrência, veio a decisão da Comissão Interamericana de levar o caso à Corte, em 2015.
Violações, exclusões, discriminações, intolerâncias, injustiças raciais são exemplos de práticas corriqueiras no Brasil e em inúmeros países, inclusive os mais desenvolvidos. Tais ações devem ser abolidas, sendo emergencial a adoção de medidas emancipatórias para transformar este legado de exclusão e compor uma nova realidade.
Nesse sentir, faz-se urgente a aplicação de medidas eficazes para romper com o legado histórico de escravidão e com as desigualdades estruturantes que compõem a realidade brasileira, a fim de que princípios basilares da civilização não desmoronem. Assim, o primeiro julgamento do Brasil pela Corte Interamericana seria um avanço nesse processo, com o objetivo de levar o país a aprimorar seu instrumental de combate ao trabalho escravo contemporâneo.

4 DA INCORPORAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS POR ATORES NÃO ESTATAIS: AGÊNCIAS FINANCEIRAS INTERNACIONAIS E SETOR PRIVADO

A nova escravidão é forma extrema de exploração econômica, que se adaptou ao mundo global. “A necessidade econômica embala a perenidade do mercado escravagista contemporânea”, mercado este, “abastecido pela má distribuição de renda mundial”.
Diante das incalculáveis vítimas de trabalho escravo contemporâneo por todo o globo, cabe ao Estado redefinir seu papel, frente aos impactos causados pela estratégia de globalização econômica, “É preciso responsabilizar o papel do Estado no tocante à implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais”.
De acordo com Delmas-Marty, “além das políticas reticentes de numerosos Estados, inúmeras dificuldades permanecem ainda por resolver”,
a natureza das violações havidas contra os direitos que, na sua maior parte, são direitos coletivos; a vontade de alargar o direito de apresentar as comunicações não apenas às vítimas, mas também a toda pessoa ou todo grupo de pessoa, toda entidade não governamental e legalmente reconhecida; enfim, as dificuldade ligadas aos autores das violações, com frequência cometidos em co-responsabilidade com os estados, os organismos internacionais, as sociedades transnacionais e/ou terceiros estados que, com suas decisões, contribuem com essas violações.
Piovesan aponta caminhos a fim de que o Estado possa promover a igualdade social, assegurando um desenvolvimento humano sustentável, com respeito e proteção aos direitos econômicos, sociais e culturais. De acordo, com a doutrinadora, seriam necessários dois atores não estatais fundamentais: as agências financeiras internacionais e o setor privado,
Em relação às agencias financeiras internacionais, há o desafio de que os direitos humanos possam permear a política macroeconômica, de forma a envolver a politica econômica fiscal, a política monetária e a política cambial. As instituições econômicas internacionais devem levar em consideração a dimensão humana de suas atividades e o forte impacto que as políticas podem ter nas economias locais, especialmente em um mundo cada vez mais globalizado.
O Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, embora vinculados ao sistema das Nações Unidas, na qualidade de agências especializadas, carecem da formulação de uma política vocacionada aos direitos humanos. “Tal política é medida imperativa para o alcance dos propósitos da ONU”.
Segundo sustenta Piovesan,
Há que romper com os paradoxos que decorrem das tensões entre a tônica includente voltada para a promoção dos direitos humanos, consagrada nos relevantes tratados de proteção dos direitos humanos da ONU (com destaque ao Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais), e, por outro lado, a tônica excludente ditada pela atuação especialmente do Fundo Monetário Internacional, na medida em que a sua política, orientada pela chamada “condicionalidade”, submete países em desenvolvimento a modelos de ajuste estrutural incompatíveis com os direitos humanos. Ressalta-se que as politicas adotadas pelas instituições financeiras internacionais são elaboradas pelos mesmos Estados que assumem obrigações jurídicas internacionais, em matéria de direitos sociais, ao ratificarem o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
De acordo com a percepção de Joseph E. Stiglitz,
temos um sistema que poderia ser chamado de governança global sem, contudo, um governo global; um sistema no qual poucas instituições — o Banco Mundial, o FMI e a OMC — e poucos atores — os Ministros das Finanças e do Comércio, intimamente ligados a certos interesses financeiros e comerciais — dominam o cenário; um sistema em que muitos daqueles afetados por suas decisões são deixados praticamente sem voz. É tempo de transformar algumas das regras que governam a ordem econômica internacional.
No que pertine ao setor privado, conforme destaca Piovesan, surge a necessidade de acentuar a sua responsabilidade social, especialmente das multinacionais, na medida em que “constituem as grandes beneficiárias do processo de globalização, bastando citar que, das 100 maiores economias mundiais, 51 são empresas multinacionais e 49 são Estados nacionais.”
Assim, faz-se necessário, que as empresas adotem códigos de direitos humanos relativos à atividade de comércio; bem como sejam impostas sanções comerciais à empresas violadoras dos direitos sociais, entre outras medidas, uma vez que, desempenham “um papel bastante significativo na vida dos trabalhadores se contribuírem a moldar as condições de emprego e as oportunidades de diálogo social nos países onde atuam”.
Nas palavras de Nina,
a idéia de responsabilidade social incorporada aos negócios é relativamente recente, O surgimento de novas demandas e a pressão do consumidor por transparência, tem forçado as empresas a adotar postura mais responsável em relação ao meio-ambiente e questões de fundo social.
Teubner sustenta que, na atualidade, as corporações transnacionais acabaram por contribuir no avanço das violações de direitos humanos e, consequentemente, aumentaram drasticamente a consciência pública sobre os efeitos negativos decorrentes da transnacionalização de empreendimentos comerciais.
Como resultado da pressão exercida pela opinião pública e pela mídia, alguns setores empresariais como têxtil, calçadista e vestuário, geralmente observados pelas organizações não governamentais e movimentos sociais, fizeram com que as corporações transnacionais erradicassem ao redor do globo códigos de conduta ‘voluntários’, também chamados de código de conduta ética, código de conduta moral e códigos corporativos.
Estes ‘autocompromissos’ firmados pelas corporações, segundo Teubner,

contêm funções, estruturas e instituições de verdadeiras constituições:
1. Na medida em que os códigos corporativos “públicos” e “privados” juridificam princípios fundamentais de uma ordem social e, ao mesmo tempo, estabelecem regras para a sua autocontenção, eles preenchem funções constitucionais centrais.
2. Com suas características de dupla reflexividade e metacodificação binária, ambos os códigos desenvolvem autênticas estruturas constitucionais.
3. Como instituições constitucionais, os códigos formam uma hierarquia de constituições públicas e privadas, mas uma ligação ultracíclica de redes de normas constitucionais qualitativamente diferentes.

Nesse sentido, os códigos corporativos, podem vir a se tornar não “apenas uma tendência de jurisdição, mas também uma constitucionalização”, demonstrando-se capazes de uma das mais significativas mudanças na estrutura jurídica, em face da transição para uma globalização mais ética e solidária.
Impõe-se, diante desse cenário, um novo multilateralismo por meio de reformas da arquitetura financeira global, a fim de que se alcance um balanço mais adequado de poder, “fortalecendo a democratização, a transparência e a accountability das instituições financeiras internacionais, de forma a ampliar a participação da sociedade civil internacional e a fortalecer a participação dos países em desenvolvimento”.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na atualidade, um primeiro contato com a palavra “escravidão” pode parecer uma referência ao passado histórico. Contudo, pode-se verificar com o presente trabalho que existem formas modernas de escravidão que se transformaram, assumindo novos contornos. Essa reflexão permite que se possa incluir nesse imaginário as atividades que são análogas ao trabalho escravo, que ainda se mantêm de formas veladas em pleno século XXI.
Em termos legislativos, o trabalho é considerado um Direito Humano Fundamental e sua garantia esta consubstanciada tanto na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e também em diversos tratados e convenções internacionais.
Isto sugere que o desrespeito aos Direitos do trabalhador e sobretudo à sua dignidade, é algo incompatível com às diversas estruturas legais, existentes tanto em âmbito nacional, como também de alcance internacional.
Contudo, como já mencionado, estima-se que existam na contemporaneidade cerca de 35,8 milhões de pessoas escravizadas em diversos setores no mundo. No Brasil, estima-se que seja em torno de 155.300 pessoas sejam vítimas dessa forma de escravidão moderna. Além disso, convém refletir sobre a possibilidade desses números serem mais elevados, já que se trata de uma violação de direitos, que por sua vez ocorre de forma velada.
Nesse sentido, é preciso conhecer as peculiaridades desse fenômeno na atualidade, que pode se constituir através de diversas maneiras, envolvendo trabalho forçado, tráfico internacional de seres humanos, cárcere privado, exploração sexual de mulheres, utilização de mão de obra infantil, etc. Trata-se de violações de Direitos que tendem a revelar o caráter clandestino das ilegalidades produzidas pelos interesses do mercado.
Diante desse cenário, é preciso contar com inúmeras ações conjuntas dos poderes públicos e da sociedade civil, no sentido de estimular um mercado que seja, em todos os aspectos, sustentável. Sobre essa questão é preciso pensar um desenvolvimento conjuntural e harmônico dos âmbitos político, econômico e jurídico. Um sistema de direitos legais envolto por obrigações juridicamente relevantes. Composto por cortes capazes de proferir decisões obrigatórias e vinculantes; um sistema capaz de persuadir os Estados a cumprirem as obrigações concernentes aos direitos humanos.
Fazem apenas 20 anos que o Brasil admitiu publicamente a existência de trabalho escravo em seu território, dando um primeiro passo rumo ao enfrentamento de um grande desafio para os operadores do Direito e para a sociedade como um todo. Apesar de saber que ainda se tem muito que evoluir na questão, é encorajador observar que o Brasil vem realizando movimentos importantes no sentido de aprimorar a capacidade de enfrentamento dessa problemática. Com isso, também se dá um importante passo no sentido de contribuir para a construção da paz nas esferas global, regional e local.

MODERN FORMS OF HUMAN SLAVERY

Abstract: This article attempts a brief reflection about the globalization strategy, which has led to loss of human rights, exacerbating social exclusion and poverty marks across the globe. The fragrant workers subjected to conditions similar to human slavery, international trafficking in persons, sexual exploitation of women and the use of child labor are some modern forms of human slavery, which remained recurring in the XXI century, despite the existence of anti-slavery policies. In this sense, the states role should be redefined in view of the impact of economic globalization across the globe. Is a pressing need to incorporate human rights agenda by two non-critical state actors: the international financial agencies and the private sector.

Keywords: Globalization. Modern slavery. International financial agencies. Private sector.

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